ESTADÃO | Panorama 2025: Cópia restaurada do clássico ‘Iracema’ mostra que Brasil não aprende nada com seu passado
03/04/2025
SALVADOR – Com Iracema, uma Transamazonica, clássico do cinema brasileiro, teve início o festival Panorama Internacional Coisa de Cinema, em sua 20ª edição.
A sessão de abertura foi gloriosa, com a presença da atriz Edna de Cássia e um dos diretores, Jorge Bodanzky – o outro diretor é Orlando Senna, que não estava presente.
No palco, Bodanzky explicou como se deu o restauro em 4K da obra, que completa 50 anos de existência, agora recuperada com materiais alemães. A televisão alemã, a ZDF, uma das produtoras da obra, realizada na Amazônia, em plena fase mais violenta da ditadura militar.
Revisto, Iracema mostra a inequívoca vocação documental da obra, que, no entanto, se apresenta como filme de ficção. De fato, acompanha um fina linha ficcional, protagonizada por Iracema, uma garota de 15 anos que se une a um caminhoneiro gaúcho, Tião (Paulo Cesar Pereio), um tipo meio cafajeste, meio nacionalista, daqueles que estampavam no pára-brisa do veículo o adesivo com os dizeres patrioteiros “Brasil: ame-o ou deixe-o”. Mensagem de que a ditadura Medici exigia adesão incondicional e qualquer crítico do regime passava a ser considerado traidor da pátria.
A estrada Transamazônica” era considerada uma das grande obras do regime e nem chegou a ser completada. Em seu trajeto, promoveu distúrbios sociais e devastação ambiental. São os focos contemplados no filme – grandes árvores abatidas, incêndios dantescos, trabalho escravo dos homens, miséria e prostituição das mulheres. Iracema é apenas uma de tantas garotinhas, que erram pelas estradas, e pairam em botecos sórdidos onde oferecem seus corpos aos passantes. Ela se une temporariamente a Tião, até que ele se canse, e a deixe numa beira de estrada, inglória como as outras.
O filme, como comentou uma espectadora, é de cortar os pulsos. Desalento puro, o avesso do “país que vai prá frente”, letra de uma canção patrioteira da época. Lindo, no entanto, pela fotografia, viés documental e comovente atuação de Edna, numa interpretação despojada, naturalista e improvisada, conforme ela mesma rememorou após a exibição do filme.
Bodanzky disse que dava um certo desalento pensar que todos aqueles problemas expostos no filme há 50 anos continuavam a existir, talvez agravados, no tempo atual. É de pensar que não aprendemos nada com a experiência.
A exibição de Iracema foi só o começo da festa. Ao longo de seus oito dias de duração, o Panorama apresentará 110 filmes, entre longas e curtas. Há três sessões de mostras competitivas, já tradicionais do evento – a nacional, a baiana e a internacional. Neste ano, haverá outra sessão, a dos filmes restaurados, do qual Iracema faz parte. Entre outros, nesta sessão, comparece o road movie Bye, Bye Brasil, de Cacá Diegues, há pouco falecido, outra reflexão sobre a “modernização conservadora” proposta pela ditadura.
Além dos filmes, há a parte reflexiva do evento, com a realização de um grande seminário dedicado à Exibição, um dos vértices fundamentais da experiência cinematográfica. As mesas redondas trarão mais de 30 exibidores de todos os cantos do país. Eles representam cerca de 400 salas de cinema independentes das grandes empresas que dominam o setor. O encontro vocaliza a luta pelas salas de cinema que estará em pauta ao longo dos próximos dias.